“Vidas passadas”— se o nosso encontro não durar

Lucas Kelly
7 min readMar 9, 2024

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Pegar o metrô no Rio de Janeiro pela manhã ou no fim da tarde é uma experiência única. A porta do lado direito abre e todo mundo corre para conseguir um lugar. Alguns vão até o ponto final, outros entram e já descem. Mas o que sempre me impressionou nessas idas e vindas é saber que tanta gente passa por mim e, provavelmente, eu nunca mais verei todas essas pessoas de novo.

Sou de uma cidade pequena. Você esbarra com alguém na rua e a chance de encontrá-la (caso você lembre do rosto) na outra esquina no dia seguinte é bem alta. Mas não na capital. Com a loucura que é a jornada até a Central do Brasil, eu sei que não vou encontrar de novo quem esteve no meu lado com o olhar cansado após um dia de trabalho. E se a gente se encontrar, não vamos lembrar um do outro. São muitas imagens. Muitos movimentos.

Sei que pode parecer estranho que eu consiga ter tantas reflexões nessas viagens que são bem cansativas, mas elas surgem. Fico pensando no quão improvável é que nossos caminhos se cruzem outra vez. É o mal da pós-modernidade: a certeza de que tudo passa, ou como escreveu Bauman: “tudo escorre pelas mãos”. Até nossas relações.

Esses devaneios dentro do metrô tem muito a ver com a minha seleção de filmes de romance preferidos. Quem me conhece sabe que todos eles têm a cidade como pano de fundo, como palco para o encontro entre os protagonistas. Em Before Sunrise, Celine e Jesse se encontram em um trem para Paris, mas descem em Veneza, e ali durante um dia, iniciam o que duraria mais dois filmes. Já em Lost em Translation, Charlotte e Bob se esbarram num hotel em Tóquio e compartilham do mesmo sentimento, pois ambos estão desorientados e sem qualquer ânimo para vida. Joel e Clementine se conhecem (e se esquecem) pela cidade em Brilho Eterno de uma mente sem lembranças. Thedoro é sufocado pela ansiedade provocada pela modernização da metrópole ao seu redor em Her. E claro já assisti a muitas vezes a busca de Ted Mosby por um amor perfeito em Nova York em How I met your mother.

Acho que sempre o que me interessou nessas histórias é o fato de que elas se contrapõe ao estado natural da vida que é o movimento, a mudança. Pessoas que se encontram quando tudo ficou diferente ao seu redor, e mesmo numa grande cidade, se esbarram e tornam-se parte um do outro. Pessoas que não tinham nenhuma noção que se encontrariam por aí, de repente, vivem um romance.

E é por isso que quando li a sinopse de Past Lives, um dos mais queridos dessa temporada de premiações do cinema, já sabia que seria um filme que mexeria comigo.

Hae Sung (Teo Yoo) e Nora (Greta Lee) são amigos de infância, mas precisam se separar quando a família de Nora decide sair da Coreia do Sul e partir em direção aos EUA (vale destacar que Nora é o nome que a menina dá a si ao chegar no país). Depois de mais de duas décadas, eles se reencontram em Nova York e, durante uma semana, conversam sobre o passado, destino e pertencimento. Em sua estreia como diretora, Celine song apresenta uma narrativa tão sensível sobre um amor que perdura mesmo quando a vida muda.

Em Past Lives, assim como Sofia Coppola faz em Lost in Translation, Celine Song apresenta a cidade não apenas como um palco de um novo romance, mas como o lugar onde acontece o improvável e qualquer um pode ser sufocado pela desilusão e a efemeridade. Já nos primeiros minutos, a diretora filma os grandes prédios da cidades e os fios dos postes que se conectam, mas depois desce a câmera para revelar os dois personagens ainda na infância em uma rua apertada subindo em direção as suas casas. Ela consegue destacar a proximidade dos dois sem qualquer diálogo, mas também já deixar claro que a frenesi da metrópole, que está atrás deles, irá distanciá-los muito em breve.

Mas quando saímos da Coreia e assistimos à vida dos dois em Nova York, a fotografia de Shabier Kirchner emprega um contraste entre o que Nora e Hae Sung estão sentindo. Quando o filme avança doze anos, Nora está indo em direção a um novo lugar para crescer na sua carreira como escritora. Seu rosto é iluminado pelo sol e a cidade ganha um aspecto de um lugar onde novas oportunidades surgem.

Para Hae Sung, no entanto, Nova York representa melancolia. A chuva atrapalha sua chegada; seu rosto é enquadrado contra luz; e no quarto do hotel, uma larga sombra que estende sua amargura. Hae Sung, já nos seus primeiros momentos na cidade, não se sente bem-vindo.

Quando os dois se encontram após vinte e quatro anos, ambos já vivenciaram experiências que moldaram suas histórias. Apesar disso, o “e se”, o romance que poderia ter acontecido, ressoa nos diálogos. Se antes os dois olhavam um para o outro sob o prisma de um laço que se estenderia no futuro, agora a relação recebe um outro significado. Hae Sung não perde sua paixão da infância, mesmo respeitando o casamento de Nora com Arthur. Teo Yoo cria uma composição perfeita para Hae Sung por usar os gestos, vagas expressões no olhar e no tom de voz retraído transparecendo toda tensão e euforia do personagem ao se reencontrar com Nora.

Nora, porém, olha para Hae Sung como o pedaço de Coréia que ainda lhe resta. Nos Estados Unidos seu nome foi mudado. Sua transição foi repentina. Sua adaptação, dolorosa. Por isso, afirmar que Nora sonha em coreano, como diz Arthur em uma das melhores cenas do longa, significa que ela ainda tenta encontrar, mesmo que no inconsciente, os fragmentos de sua identidade que foram perdidos e ignorados em um país que protege a padronização de identidades e corpos.

O encontro acontece, mas tudo mudou. Nas travessias que todos nós percorremos, deixamos para trás sentimentos, sonhos e nos reinventamos quando chegamos do outro lado. Ilustrando essa ideia perfeitamente, na sequência em que Nora questiona Hae Sung sobre a razão de sua visita, no fundo do plano, assistimos a duas crianças brincando num carrossel. O carrossel gira suavemente revelando as crianças que um dia eles foram, mas a vida mudou e já não são mais os mesmos.

Celine Song e seu diretor de fotografia, Shabier Kirchner, representam isso ainda mais perfeitamente, no momento em que os dois finalmente se encontram. A câmera se movimenta lentamente mostrando um personagem de cada vez. Sentimos falta de assisti-los juntos no plano em meio ao calor do reencontro. Mas com essa intercalação durante a cena, a diretora reforça que eles já não são mais como eram. Precisamos nos acostumar a vê-los separadamente. Ainda nesse sentido, há muitas sequências em que a movimentação de câmera flui suavemente, seja para revelar um cômodo ou para acompanhar os personagens. É o movimento natural que compõe a vida.

Todo o filme gira em torno de um conceito budista apresentado por Nora: In-Yun. Se duas pessoas se conectam no presente é porque nas suas vidas passadas elas se encontraram. Se duas pessoas se casam é porque existiram oito mil camadas de In-Yun. Camadas de vidas passadas.

O longa de estreia de Celine Song apresenta a efemeridade dos laços que criamos ao longos das vidas, mas sem deixar de fazer poesia sobre o que esses encontros deixam em nós. Hae-Sung e Nora se distanciaram pelo decorrer dos dias e tiveram seus destinos mudados.

O plano final revelando a cidade em movimento evidencia a fragilidade. Vivemos e nossos pedaços se vão. Ficam nas pessoas. Parte de quem Nora era não voltará a existir, mas ficará para sempre em Hae Sung. Parte de mim ficou nas pessoas com quem esbarrei e que hoje já não sei mais onde e como estão.

Nossos pedaços também ficam nos lugares que um dia visitamos ou chamamos de “lar”. Ficam nas ruas por onde crescemos. Nos bairros onde corremos. Ficam até nos metrôs que pegamos cedo pela manhã.

Como disse o Jão numa música que eu adoro: para estarmos no mesmo plano, na mesma hora com as pessoas que amamos é realmente um alinhamento milenar. Mas no fim não sei quanto tempo esse encontro vai durar.

Vidas Passadas está disponível no Telecine.

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