Retratos Fantasmas — histórias em tijolos

Lucas Kelly
6 min readSep 7, 2023

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Cinema de São Luiz em “Retratos Fantasmas” — Foto: Reprodução/Vitrine Filmes

Quando vou ao Centro do Rio de Janeiro, lembro-me dos meus ancestrais. Penso que nas mesmas calçadas por onde ando para chegar ao metrô, aqueles que tinham meu tom de pele foram maltratados, vendidos para homens brancos e seus ossos agora estão debaixo dos trilhos por onde passa o VLT. No Centro do Rio hoje tem exposição artística. Tem ciência sendo divulgada. Mas ali também já foi palco de tortura.

Costumo me surpreender quando chego ao Centro no ônibus que vem de Guapimirim. Passo em frente ao Cais do Valongo onde tantos africanos desembarcaram para morrer. Tudo no mesmo lugar. Lá trás, negociações políticas, revoltas populares. Hoje, museus. Tem história nas pedras.

Meu pai conhece esses percursos muito bem. Quando vamos juntos, ele me chama, aponta para o lugar e conta com tantos detalhes que parece que viveu ali naquela época que está narrando. Ele quer que eu saiba que naquele lugar, que já não é mais o mesmo, muita coisa aconteceu e não pode ser esquecida jamais.

Os lugares mudam. Árvores dão espaço aos prédios. Porque buscamos evolução, desenhamos novas configurações para os espaços. E o que passou vira memória. Faz parte. A vida segue, a cidade não para. E quando vemos os lugares que frequentamos passarem por mudanças, mesmo que sejam mínimas, sentimos. E Kléber Mendonça demonstra saber como ninguém o que é sentir sua vida mudar a partir das demolições e construções a sua volta. Sabe bem que em cimento tem emoção.

Cine Veneza em “Retratos Fantasmas” — Foto: Reprodução/Vitrine Filmes

Exibido no Festival de Cannes e Gramado, Retratos Fantasmas, novo documentário do responsável por Bacurau, Recife frio entre outras obras, explora as mudanças que ocorreram nos cinemas de rua de Recife, bem como no apartamento em que morou desde a infância.

E nessa perspectiva já existe uma habilidade narrativa na forma como o cineasta escreve seu documentário. Na primeira parte da projeção, Kléber foca em abordar os diferentes significados que seu apartamento recebeu ao longo de sua vida e carreira como cineasta. Ali, ele viveu com sua mãe, a historiadora Joselice Jucá. Vivenciou afeto, perdas e conquistas no mesmo prédio. A partir da narrativa no apartamento em que morou durante 40 anos, o realizador fala sobre o processo criativo enquanto exibe cenas de seus filmes como Aquarius e Som ao redor que tiveram cenas filmadas no local, além de outras obras gravadas durante seu tempo na universidade.

Delicadamente, a montagem une filmagens caseiras com sequências das obras permitindo que a história de Kléber seja a nossa também. Você consegue recordar também o quanto uma casa, seja a sua ou a de outra pessoa, ganha muitos significados enquanto a vida acontece. As lembranças tão íntimas do autor, de repente, se tornam coletivas porque vemos bem de perto suas obras nascendo no apartamento e até mesmo os perrengues que ali viveu, como os latidos do Nico. E assim, nos lembramos do afeto que sentimos pelas casas, ruas, azulejos rachados por onde já pisamos.

Há até uma certa similaridade com “As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty”, que é talvez o filme que eu mais amo. No documentário, Jonas Mekas reúne uma coleção de imagens caseiras de 30 anos de sua vida para refletir sobre a transitoriedade da vida e a beleza dos “momentos insignificantes”. Em diversas sequências, o realizador para a exibição para falar com o espectador sobre a edição do longa e sua finalidade tão incerta ao publicar a obra. Em Retratos Fantasmas, nos aproximamos de Kléber não apenas pela narração (que conta até com uma reclamação engraçada dos gatos da vizinha que invadiam sua casa) mas também porque ele expõe, assim como Mekas, as decisões criativas para a montagem do filme e suas sensações ao ver a vida em movimento, ao ver as imagens em movimento. Sua voz conduz para uma jornada tão pessoal onde qualquer um é bem-vindo para conhecer e sentir. E é dessa forma, que os retratos que Kléber exibe na projeção parecem ser pertencer a qualquer um que assiste.

Do apartamento, Kléber expande sua experiência para o centro de Recife, que “tem cara de que foi abandonado sem qualquer explicação”. Ele nos leva a conhecer a história dos cinemas de rua da cidade por onde passou tanto tempo na juventude. Uma série de filmagens e fotos de arquivo que nos permitem assistir às mudanças que o centro e todas as salas de cinema presentes naquela região sofreram.

Em uma sequência, Kléber traz um enfoque para as marquises dos cinemas que, para ele, traziam mensagens “subliminares” para quem passava. Era um trabalho manual capaz de comunicar comunicava algo para qualquer um que olhasse, mesmo sem saber sobre o conteúdo do filme (“Silêncio dos inocentes”, por exemplo). Com isso, o realizador demonstra seu apego àquelas salas que frequentou, mas também revela os cinemas de rua como lugares sagrados capazes de reunir tantas pessoas em diferentes horários para contemplar a mesma arte que falou de modo distinto já no título enorme na fachada. É o cinema como uma experiência tão singular para qualquer pessoa que vai até a sala. Os significados múltiplos da arte.

Kléber deixa claro que a história não estava apenas em eventos épicos ou construções, mas em pessoas. Ao narrar sua experiência pelas salas de Recife, o diretor também fala sobre sua relação com Seu Alexandre, o responsável pela projeção dos filmes no Art Palacio. Nas conversas gravadas com Alexandre, que carregava um bom humor, reconhecemos o zelo do funcionário e o quanto sentiu quando soldados chegaram ao prédio durante a ditadura militar, e principalmente, quando o Art Palacio fechou. O lugar de encanto para tantas pessoas sofreu mudanças. Seu Alexandre não exibiria mais de Varda a Argento. A relação entre Kléber e Seu Alexandre ilustra com maestria o que fica quando prédios desabam ou cinemas fecham: fica afeto. E isso fica mesmo se, como no sonho de Kléber, Seu Alexandre virar luz com a projeção.

Além de Alexandre, também conhecemos Paulo, um homem que guardava todo lixo jogado pelas distribuidoras estrangeiras atrás das salas de cinema. Suas vendas no camelô eram recheadas de rostos de artistas famosos de Hollywood. E assim Kléber nos aproxima das pessoas, reforçando que seu documentário não é tanto sobre tijolos.

O diretor também consegue reforçar o impacto das mudanças simbólicas. Em certo momento do documentário, somos surpreendidos com a descoberta de que o cinema Art Palacio, que foi inaugurado em 1940 no governo de Vargas, seria usado inicialmente para ser uma extensão da propaganda nazista em Recife. As salas em que milhares de pessoas estavam para contemplar a sétima arte seria usada para limitar a perspectiva e apresentar uma ideia superior.

O mesmo símbolo com outro significado é visto também quando igrejas evangélicas compram salas de cinema. Kléber observa que essa mudança ocorre a partir da ascensão das denominações evangélicas e critica a ocupação de espaços antes usados para contemplação para fins de expansão do capital. Para Kléber, essa configuração é simbólica porque, como diz ele, para muitos, o cinema é um templo sagrado.

Carnaval em Recife — Foto: Reprodução/Vitrine Filmes

Cidades mudam. Mas mesmo com mudanças tornam-se lar. No final do longa, Kléber, para chegar ao seu destino, decide percorrer pelos cinemas de rua do centro do Recife que agora são farmácias, igrejas e lojas de varejo.

Como ele mesmo diz, “é meio triste se apegar a um produto”. E como é. Tenho alguns lugares por onde passo hoje. Não quero que alguns cantos em minha cidade mudem, mas sei bem que podem não ser mais os mesmos daqui a dois anos. E é bem desconfortável ver a vida passar. Ver tantas mudanças acontecendo. Por isso vale tanto o que ainda temos. Aproveitar o que não passou, porque em breve vai sem que a gente perceba.

Claro, tenho também meu cinema preferido. O único desenhado por Oscar Niemeyer. Gosto de ficar ali. Ver a universidade onde me formei. Mesmo morando distante, tento estar lá uma vez ao mês. A biblioteca do espaço já fechou e não quero que aconteça o mesmo com o cinema. Porque os lugares, querendo ou não, levam um pedaço de nós. Há uma parte de mim naquele corredor de cinco salas. Mas pode não existir mais daqui a alguns anos. E se virar fantasma, ainda assim guardarei seu retrato.

Lucas Kelly

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