As I was moving ahead occassionaly I saw brief glimpses of beauty — vida em movimento

Lucas Kelly
5 min readMar 30, 2023

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“Em algum momento, tudo passa. Estamos em um momento, em outro segundo, estamos em outro. Enquanto alguma coisa acontece, tudo já passou. Vira passado, vira memória. Mas algumas memórias nunca vão realmente embora. Nada realmente vai embora. Está sempre aqui”

“Eu não faço filmes. Eu apenas filmo”, explica o diretor Jonas Mekas sobre a razão de ter reunido uma coleção de imagens caseiras durante 30 anos de sua vida. Com duração de quase cinco horas, em As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty (Ao caminhar entrevi lampejos de beleza), Mekas demonstra seu amor pelos “momentos insignificantes”, dias sem clímax. O filme projeta cenas sem as reviravoltas que deixariam qualquer espectador surpreendido. Assistimos ao encontro de crianças com a natureza, amigos compartilhando uma refeição em uma casa à noite, piqueniques no parque, animais brincando. Simplesmente a vida.

Confesso que no início do filme, fiquei me perguntando o porquê do diretor ter escolhido filmar tudo o que estava ao redor. Na verdade, me questionei ainda mais sobre sua decisão de compartilhar um diário tão íntimo de memórias. Mas no capítulo três, Mekas me impressionou com as respostas para minhas perguntas.

Ele compartilha ter filmado porque, ao se impressionar com o que via, sabia que aquilo não deveria ser esquecido. Sejam os primeiros passos de filha ou flores dançando com o vento, para ele, algumas cenas merecem não ser apenas contempladas, mas também registradas, já que os anos se vão depressa e nossos olhos não acompanham.

Em sua filmografia, o realizador sempre buscou fazer registros do cotidiano. | Foto: Reprodução

O interesse de Mekas não reside em criar uma ordem cronológica para encaixar as cenas. Como explica nas narrações, ele não sabe onde os pedaços de sua vida se ajustam. Porque mesmo que recorde em que período aqueles momentos aconteceram, o que está em sua memória são apenas fragmentos. O tempo costuma apagar certos detalhes. Por isso, assim como somos uma mescla das muitas versões de nós mesmos que surgem ao longo da vida, o cineasta prefere olhar para as cenas, sentir outra vez e assim montar o filme.

Ouvimos também o autor compartilhando sobre o processo de montagem de sua obra. Ele dá detalhes sobre o período em que estava editando (como na véspera de Ano Novo) e até mesmo em qual cômodo de sua casa se encontrava. Diante de tantas cenas e emoções a sua frente, ele tenta criar uma narrativa. Unir os fragmentos de três décadas de sua vida e exibi-los em horas.

Forma-se, então, uma argumentação sobre a existência do cinema. Para Mekas, a sétima arte existe para que suas vivências ganhem uma construção lógica. Ele usa a câmera para reinterpretar a vida e edita as imagens para reencontrar partes de si que já não irão voltar mais. Em cada cena, resquícios do passado que o ajudam a entender o agora. Com isso, é fácil entender porque muitos diretores têm usado o cinema para investigar as memórias da infância, como Spielberg em The Fabelmans, James Gray em Armageddon Time, Charllote Wells em Aftersun e Kenneth Branagh em Belfast.

Esposa de Jonas Mekas durante o documentário | Foto: Reprodução

Reafirmando a lógica desordenada da existência, a montagem investe na sobreposição de cenas, e frequentemente, vemos dois eventos acontecendo de modo simultâneo. Às vezes, um ocupa mais espaço no plano do que outro, mas ainda todos estão lá. Porque, de igual forma, também somos essa sobreposição presente na tela. De pedaço em pedaço, vivemos e achamos nosso lugar no mundo.

A narrativa também tece comentários sobre a efemeridade da vida pelo uso constante de zoom in e zoom out. Sempre com a câmera na mão, Mekas nos aproxima e nos distancia das cenas recorrentemente. Nos unimos a ele nessa tentativa de capturar a beleza presente em cada plano, a árdua tarefa de guardar a vida que está sempre em movimento.

E aqui, assistimos ao que talvez seja a exposição mais clara da diferença entre a fotografia e o cinema. A fotografia encontra sua expressão no estático, uma imagem capturada de um momento. O cinema, no entanto, se expressa por meio da lógica natural da vida: o movimento. O espaço fílmico (o que está dentro e fora do quadro) se constitui por fotogramas exibidos em sequência que são passados em um ritmo favorável para a compreensão de quem assiste. Por isso, o cinema é a arte que toma a posição de ser a melhor “impressão da realidade”.

Na montagem, o diretor opta por usar a sobreposição de cenas para demonstrar o encaixe dos momentos de sua vida. | Foto: Reprodução.

Em certo momento da projeção, o realizador diz não saber os motivos pelo qual está filmando, assim como não sabe qual o sentido da vida. Não sabe dizer para onde iremos e o que pode acontecer conosco. Mas, apesar disso, continua com a câmera ligada. Registrando, sentindo, memorizando a vida. Para ele, não se pode perder tempo questionando o sentido, enquanto há tanta beleza ao redor. Só é preciso apreciar a vida em seu movimento contínuo.

O documentário de Jonas Mekas encontra dimensão na experimentação da linguagem cinematográfica para fazer poesia com a luz. A câmera como janela para percepção de novas interpretações sobre a vida. E o autor sente a vida que se vai enquanto tenta contê-la e “manipula-lá” pela montagem.

Mas ao final da exibição, entendemos que Mekas aceita a interruptibilidade da vida. Como ele deixa escrito no papel: Life goes on (“A vida continua”). Tudo se vai e vira passado. Mas nada vai para sempre. Os lampejos, às vezes, aparecem outra vez.

Assistindo à poesia de Mekas, lembrei-me de um trecho de um ensaio escrito por Freud em 1915:

“Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”.
Sobre a transitoriedade” — Freud (1915)

“As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty” entrou para a mais recente lista de melhores filmes de todos os tempos da revista britânica “Sight & Sound” | Foto: Reproudção.

Aceitar a brevidade da vida que temos é o que nos faz amá-la um pouco mais. Aceitar que bons momentos duram pouco me leva a vivê-los melhor. E claro, consequentemente, isso me faz amar mais o cinema que sempre vai me deixar ter um outro encontro com os lampejos de beleza que um dia me fizeram sorrir.

Lucas Kelly

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